É TEMPO DE CONTAR ESTÓRIAS

 Hadoock Ezequiel

11/12/2020



Durante a pandemia, muitas pessoas ficam sem saber o que fazer, deixando o tempo livre ser preenchido apenas com as mídias sociais, tonando-se vazio e monótono. Uma boa ideia para levantar nosso ânimo é fazer uma boa leitura literária. Quando essa leitura é de um autor da nossa região, torna-se ainda mais prazerosa. Diante desse contexto, apresento ao leitor, a obra Tempo de estórias, do autor potiguar Bartolomeu Correia de Melo.

Bartolomeu Correia de Melo nasceu em Natal, no ano de 1945 e foi criado na cidade de Ceará-Mirim, vindo a falecer no ano de 2011. Foi formado em química e foi professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou seu primeiro livro em 1998, Lugar de estórias, sendo laureado com o prêmio Joaquim Cardozo, da União brasileira de escritores. Em 2002 publicou Estórias Quase Cruas e não parou mais. Depois veio O Fantasma Bufão, Tempo de Estórias, Rosa Verde Amarelou, Musa Cafuza, A Roupa da Carimbamba e A Onça Braba e o Cachorro Velho.

Em suas obras, ele observa-se uma linguagem marcada pela oralidade e característica regionalista. Em Tempos de Estórias, o livro “surpreende o leitor pela linguagem e maneira ímpar de construir a prosa. Um jeito de escrever absolutamente peculiar – leve e fluido” (BAGAÇO, 2018).

A prosa apresentada no livro nos faz lembrar os contos de Guimarães Rosa, os quais apresentam uma linguagem oral e temáticas que estão relacionadas aos nossos costumes. No livro, nos deparamos com contos que trazem temas relacionados à religiosidade sertaneja, lendas e outras “estórias” que marcaram e marcam o cotidiano do potiguar, todas, sublinhadas com um tom de humor e crítica social. Para o leitor, deixo aqui um dos contos desse livro fascinante:

 

VEM chegando. Debaixo do foguetório, carro-de-som puxa rosário:

"Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco..."

Rua afora e janelas adentro, choramingo da bandinha e latomia dos fiéis:

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

No quarto-do-meio daquele sobrado, Salete e Dorinha...

- Chega, mulher! Mazinho já dobrou a esquina, com a cruz-do-divino.

- Peraí, estou indo; não acho meu trancelim. Quede a loção?

- Espia, vem todo espigado, o semostrador; mesmo terninho curto, todo ano.

- Enjoei desse fresco besta; mais parece uma porta-estandarte!...

- Tanto que te arrumas, só pra sair na janela? Avia, lerdeza!

- Vê se me ajudas nesse colchete. Será que engordei?

- Vixe, menina, estás mascarada! Deixa tirar...

- Mudei o pó-de-arroz. Esse agora rende mais.

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

- Escutas a voz de Zabé Capela no meio-do-mundo?

- Respostando a oração arriba da multidão.

- Mas não é? Eita, magrela gasgita! Fhum!

- Indo pro céu, vai deixar Jesus mouquinho!

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

- Ah, os anjinhos, mulher, que lindeza!

- Lembras do nosso tempo de anjo? Eram asas mais bem feitas.

- A mais bonita é Tininha, não?

- Pois que bem puxou a bênção das tias dela.

- Aquela maiorzinha até que passou da idade de anjo.

- Virando capetinha... Repara os peitinhos já brotando.

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

- Eita! João da Loja vem melado; tombando fora da fila.

- Bêbado indecente, finda tangido da igreja, feito cachorro!

-Triste devoto de Nossa Senhora das Garrafas! Fhum!

- Será por chifre-de-noiva, faz-que-tempo, levado?...

- Rhum! Não sinto remorsos! Bem que foi merecido!

"Santa Maria de Deus rogai por nós pecadores..."

- Quem é aquela de fita azul, atrás de Ceição Batata?

- Maria Rita de Neco Souza. Por que indaga?

- Espia bem pra barriga... Aposto que buliram com ela.

- Coitada, quanta vergonha! E isso é Filha-de-Maria!...

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

- Dona Coló, mesmo caduca, não perde função nem obrigação.

- E largam a velha sozinha, variando no meio do povaréu...

- Diz-que a briga pela herança já começou, ela inda viva!

- Com tamanha carolice, capaz de deixar tudim pra Santa.

- Ah, magino a cara chocha dos parasitas!...

- Fhum! Será bom demais pra gargalhar.

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- Quem disse que Paulim Meia-Garrafa agüenta carregar andor?

- Naquele tamanhico, só atrapalha os outros!

- Espia; chega vai esguiado, na pontinha dos pés!

- Finda derrubando a Santa, que Deus me perdoe!

- Cadê o sacristão, que não ajeita isso?

- Lá na torre, tocando no sino e nos meninos...

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

- Ai, Saletinha, me arrupio todinha, quando avisto essa pessoa!

- Onde, onde? Ah, já avistei, na banda-de-música.

- Tocando bombardão... Que fôlego, que bochechas!

- Parece que melhor tocava os taróis de quem conheço...

- Ah, nem me fales... Se não me olhar, hoje não durmo!

- Sossega o facho mulher, faz trinta anos!

- Quando enviuvar, casa comigo; Mãe Jupira prometeu.

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

- Vigia ali, a presepada que vem vindo!

- Tibes! Seu Agenor de novo amor!... Uma criança!

- Bonitinha, a forasteira. Mais parece bisnete desse ridículo.

- Ah, cabrita entojada! Ventinha pra riba, procurando catinga.

- Ele todo ancho, mostrando a quenguinha.

- Ora, que amostre! Que outro uso daria pra dita-cuja?...

- Nem a poder de catuaba! Mata o velho! Fhum!

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

- E as irmãs Vasconcelos sempre estreando roupas novas...

- Não as entendo... Como se arrumam?

- A decadência guarda mistérios, comem nobreza e educação.

- Falam de encontros marcados nas altas horas...

- Com tais feiúras, não acredito! Haja língua ruim!

- He, he! Aumento, mas não invento.

 

"Santa maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

- Olha, Zazá mais o trouxa dela. Não tira o olho dos rapagões.

- Diz-que o de agora é Biuzim de Creuza.

- Mesmo? Aquele frangote botador d'água? Não brinques!

- Bem reparando, ficou troncudo, bom de abraçar.

- Mulher, te comporta!

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

- Vigia só, o infeliz do Gavião! Deus nos livre!

- Solto de novo? Ah, desgraçado!

- Capaz de bater a carteira do padre!...

- Hi, olhou pra gente, disfarça!

- Diz-que,além de ladrão, é tarado.

- Oxente! Larga de léria!

- Foi pego brechando Janilza no banho.

- Até que nem tão tão malencarado como pintam...

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

- Cada dia mais magrinho, Padre Afonso...

- Falam naquela doença, tadinho.

- Doença-do-mundo?

- Não, maldosa, doença-do-peito!

- Vôtes, isso pega?

 

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

 

Breque da banda, bem floreado. Daí, esbarra o andor perante o casarão. Rachões na calçada, paredes descascando, mas janelas adornadas por toalhas de labirinto. Entre papocos, aplausos e pétalas de rosas, brada o carro-de-som:

"Esta estação simboliza o quinto punhal cravado no coração de Maria. Rogamos a Deus pelos dessa casa, a família do saudoso Dr. Peixoto."

A banda tascou o hino da Padroeira.

"Viva Nossa Senhora das Dores!"

"Vivaaa!"

Da janela-do-meio, dignas como a Santa, elas sorriam e agradeciam.

 

Referências

 

 

Bartolomeu Correia de Melo. Disponível em: https://www.facebook.com/631080320324781/photos/bartolomeu-correia-de-meloontem-dia-18062018-foi-anivers%C3%A1rio-de-7-anos-da-morte-/1385737614859044/ . Acesso em: 11/12/2020.

 

MELO, Bartolomeu Correia de. Tempos de Estórias: contos. 2. Ed. Recife: Bagaço, 2018, p.25 – 30.

 

MONTEIRO, Maria Betânia. Bartolomeu Correia de Melo: Contos e outras Estórias Imburana – revista do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses/UFRN. n. 6, jul./dez. 2012





Comentários