A vida por si só já é uma viagem. Nela,
passamos por diversas fronteiras e nos deparamos com cenas e gente. Em cada
parada vivemos momentos que nos marcam para sempre, podendo ser alegres ou
tristes. No dia a dia, muitos precisam se deslocar para longe por motivos
diversos. Alguns chegam a ficar entediados pela monotonia e o cansaço da
viagem. Outras, com um olhar poético, transformam essa realidade em poesia,
como é o caso da poetisa Valdenides Cabral.
Nascida em São José do Sabugi -PB, foi
criada em Parelhas -RN e reside em Recife- PE. É Doutora em Teoria da
Literatura e atualmente professora adjunta da UFRN, no Programa de
Pós-graduação em Estudos da Linguagem. É autora dos seguintes livros: “Pulsações”,
(1999); “Poesia Menor”, (2009); “Pontos de Passagem”, (2011), “O Retórico
Silêncio”, (2013) e Pulsar” (2017). Sua poesia carrega a tradição seridoense e
compõe o cenário de escritoras do Rio Grande do Norte. “Valdenides Cabral
filia-se à tradição moderna (suficiente mencionar, aqui, poetas brasileiros
como: Augustos dos Anjos, Drummond, Cecília Meireles, ao tornarem como matéria
reflexiva de suas criações os seus próprios poemas)” (SANTOS, 2011).
Tomando a “matéria reflexiva”, seus
próprios poemas, apresentamos aqui o seu terceiro livro, “Pontos de Passagem”,
em que transitando durante muitos anos entre Recife-PE e Currais Novos-RN, a
autora transformou o fardo da viagem em pontos poéticos, refletindo em forma de
poesia as vivências da estrada, observando pessoas, paisagens e a complexidade
do mundo.
Escutar as pessoas, observar seus gestos,
seus gostos podem nos ajudar a entender o mundo e o outro, servindo de
exemplos. No poema, Os que se sentam ao meu lado, o eu lírico em suas
andanças ouve e vê cada personagem que senta ao seu lado, independente de cor,
da classe social, servindo como ensinamentos. Passamos ao poema:
Os que se sentam ao meu lado
Hoje
Um alemão lê
Dan Braown
Em inglês:
Angels and Demons.
Ontem,
Uma senhorinha
de seus sessenta
anos
destilava em meus
ouvidos
algumas gotas
de seu caipirês:
“pro mode, pro via
Por’cês não
pensarem mal
da minha pessoa.”
Amanhã
quem se sentará ao
meu lado?
Quem abrirá meus
olhos,
meus ouvidos,
minha boca?
Quem me despertará
dessa
cego-surdo-mudez
deslizante
deste meu ócio
inevitável?
A poesia de Valdenides é suave,
assim como sua voz. Nos traz tranquilidade e nos toca profundamente a alma. O
poema Visão do paraíso faz com que o leitor se reconheça em um “ponto de
paragem” da vida, nos instantes em que o eu lírico contempla a imagem da mãe. O
tempo efêmero, não espera e vemos as pessoas que amamos ir embora, sem que
possamos fazer nada, apenas contemplar sua imagem que o tempo transforma quase
em “Santa”. O poema nos lembra Drummond em Para sempre: “Por que Deus
permite/Que as mães vão-se embora?/Mãe não tem limite/É tempo sem hora...”.
A imagem da mãe apresentada no poema Visão
do paraíso faz com que o leitor, assim como o eu lírico, “apreenda a imagem
da mãe” e a congele no “fundo da alma”. Um dia, elas irão envelhecer, ficar
mudas, mas falarão em seus gestos e em seus “cabelos de prata”, parte do ser
que pode metaforicamente representar o brilho da vida. Passemos
à leitura do poema:
Visão do paraíso
Vi ontem
a minha mãe
com seu cabelo de
prata.
Quase Deusa,
quase, Santa.
Vi ontem
A minha mãe
na sua mudez que
fala
pela ponta dos
dedos.
Apreendi ontem
a imagem da minha
mãe
e a congelei no
fundo da minha alma
junto com a
palavra amor
que nunca ousei
lhe confessar.
Portanto, o livro Pontos de passagem, nos faz refletir sobre tantas passagens que fazemos. Em cada poema, encontramo-nos e reconhecemos pessoas, cenários e situações da vida. Como diz a autora, “nesses pontos de paragens” entramos e saímos levando “a conta da saudade em “moedas de valor inegociável”. Convido o leitor a ler o livro e deixo aqui, a leitura do poema Pontos de passagem, para que que ele possa viajar na leitura e parar um pouquinho em cada ponto poético do livro:
Pontos de passagem
Passam velhas
casas
carros
água pouca.
O sol me segue.
Meço a janela de
vidro.
Ventania.
Um palmo de minha
mão,
o mundo lá fora.
O corte frontal
das serras
estendidas pelo
chão
me dizem de um
sonho antigo:
- era uma serra
e o sol me roçava sua língua de fogo
ao entardecer.
Língua de fogo
morna, de sol se pondo,
sol se escondendo, se encolhendo por trás de mim,
fugindo de mim.
Hadoock Ezequiel Araújo de Medeiros
18/09/2020
Referências:
DIAS, Valdenides Cabral de Araújo. Ponto de passagem. São Paulo: Socortecci, 2011.
SANTOS. Derivaldo dos. Prefácio para Ponto de passagem. São Paulo: Socortecci, 2011.
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