Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, foi e ainda é conhecido como o poeta popular de maior relevância na literatura popular. Patativa foi poeta popular, compositor, cantor e repentista. Muitos tratam sua poesia como matuta, no entanto, mesmo sem estudo, ele era conhecedor das letras, escrevia de forma que alcançasse o público leitor, pessoas simples, da roça. Muito mais que matuta, sua poesia retratava as mazelas sociais da época, como a seca e a fome, servindo como meio de denúncia social.
Por outro lado, sua obra poética é criada por um lirismo singular, com imagens que parecem fotografar instantes do sertão, mostrando ao leitor o que há de mais belo nesses espaços sertanejos. Em Cante lá que eu canto cá, podemos observar tal beleza:
CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ
Mas porém, eu não invejo
O grande tesôro seu
Os livro do seu colejo
Onde você aprendeu
Pra gente aqui sê poeta
E fazê rima compreta
Não precisa professô
Basta vê no mês de maio
Um poema em cada gaio
E um verso em cada fulô
[...]
Canto as fulô e os abróio
Com todas coisa daqui
Pra toda parte que eu óio
Vejo um verso se bulí
Se as vêz andando no vale
Atrás de curá meus male
Quero repará pra serra
Assim que eu óio pra cima
Vejo um divule de rima
Caindo inriba da terra
[...]
Patativa, nome artístico associado a uma ave que tem um canto melódico. O poeta cearense, assim como a ave, cantou em forma de poesia, as mazelas e as belezas nordestinas. Patativa se foi, mas deixou um legado para a poesia popular, inspirando as futuras gerações de poetas.
Assim como o poeta cearense, o Rio Grande do Norte, também canta a beleza potiguar na voz e na poesia do Mestre Antônio Francisco Teixeira de Melo, nascido em 1949, na cidade de Mossoró – RN. Apaixonado pela vida, gasta parte de seu tempo andando de bicicleta pela cidade, colhendo amizade e plantando esperança, como ele próprio afirma. Sua poesia apresenta uma reflexão em torno da sociedade e das atitudes do homem contemporâneo.
Cheios de lirismo, envolvendo imagens, ritmo, sons e lugares imaginários, seus cordéis mais do que crítica social, pintam com poesia os cenários da região nordestina, apreciando a fauna e flora da Caatinga. A obra do poeta chega a ser comparada, por alguns críticos, à poesia de Patativa do Assaré. Como afirma Pinheiro (2009, p. 62), “uma das grandes forças da poesia de Patativa está em criar imagens”, imagens que evocam o encantamento da natureza e atrai seus leitores.
Mantendo uma certa unidade temática – a crítica social – em seus cordéis, Antônio Francisco revela uma sensibilidade, sugerindo sentimentos que deveriam fazer parte da sociedade, como o arrependimento, a compaixão, a amizade, o amor, o perdão e a caridade, palavras essas recorrentes na maior parte de sua obra. Além disso, sua poesia está entre imagens, som e ritmo. Para melhor evidenciarmos como Antônio Francisco retrata o sertão, trago abaixo o poema Alvorada Sertaneja:
ALVORADA SERTANEJA
No meu sertão
Quando o céu abre a janela
O sol vem passa por ela
Com seus raios cobre o chão.
Meu pé de serra
Se veste numa aquarela
Passando o pincel na tela
Das paisagens do sertão.
O nambu canta
Dando viva a luz do sol
Pequeno rouxinol
Também faz sua canção
E seus acordes
Se fundem com a luz do dia
Dando brilho à melodia
Da garganta do sertão.
Entre os serrotes
Passa um riacho correndo,
Murmurando, se torcendo,
Se arrastando pelo chão,
Levando areia,
Pedra, pau, barro e raiz,
Deixando uma cicatriz,
Na face do meu sertão.
As nuvens descem,
Cobrem a serra com seu véu
Se mistura terra, céu
Na mais completa união.
E nesse instante
De beleza, paz, magia,
Sopra o vento e nasce o dia
Nas quebradas do sertão.
No poema, presente no CD Os Animais têm razão: para ouvir e pensar (2010), o eu lírico consegue trazer até o leitor a riqueza e beleza do sertão seridoense. Um observador que também contempla a natureza. Esse olhar, portanto, confunde-se com o do leitor sertanejo, o qual se identifica na leitura: “Meu pé de serra/Se veste numa aquarela/Passando o pincel na tela/Das paisagens do sertão”. Isso evidencia-se quando o eu poético usa o pronome possessivo meu, que dá a ideia de que o lugar onde vive não é só dele, mas também de quem ler sua poesia.
Os dois Antônios, cantam as nossas belezas e ao mesmo tempo, denunciam as injustiças sociais. Contudo, cada um, traz em sua escrita uma característica própria. Antônio Gonçalves, Patativa, com sua linguagem matuta e Antônio Francisco, com um campo semântico composto por palavras como injustiça, compaixão, irmão, verdade, entre tantas outras que compõem sua poesia. Como forma de exaltar esses dois grandes mestres da cultura popular, apresento ao leitor, um cordel que fiz em 2015, intitulado Pelejas dos Antônios, em que trago um encontro sobrenatural dos dois poetas. Na escrita do cordel, utilizo a linguagem específica de cada um deles. Boa leitura!
PELEJA DOS ANTÔNIOS
Autor: Hadoock de Aninha
Guimarães Rosa falou
Que quem morre se encanta
Morre o corpo, fica a alma
E a semente que se planta
A memória fica viva
Igual uma imagem santa.
E a alma do poeta
Permanece com a gente
Morando em cada rosa
No amor está presente
Na memória e nos sonhos
Feliz, risonha e contente.
E o poeta Antonio Francisco
Em um dos sonhos profundos
Encontrou Antonio Gonçalves
(Patativa) que no mundo
Contou muitas injustiças
Do mais rico ao vagabundo.
E no sonho ele disse:
“Vim aqui pra proseá
Fui poeta brasileiro
Das terras do Ceará
Onde o sol brinha mais forte
Fazendo a terra secá”
“Fiquei velho acabrunhado
Mas nas terras do Sertão
Inté que fui bem feliz
Na lavoura de feijão
E na lavoura da vida
Plantei versos e canção
“Não cansei de imitá
A musca dos Passarim
Que todo dia bem cedo
Entoavam para mim
A beleza da Caatinga
E o perfume do jardim”.
“Gostaria que você
Me falasse aqui da Terra
Como anda o ser humano?
Ainda pensa em guerra?
Como anda a nossa mata
Da planice até a serra?”
Nessa hora Antonio Francisco
Encheu-se de emoção
Sem ter forças pra falar
Procurou inspiração
No poço da sua mente
E na voz do coração.
Bebeu um gole de poesia
E começou a falar:
“Mestre, mestre dos poetas,
Como é bom te encontrar!
O mundo anda esquecido
Dá até pena contar”.
“O homem anda perdido
Sufocado de vaidade
Na loucura e na gula
E o caldo da verdade
Faz tempo que viajou
Pra cidade da saudade”.
“Todo dia o ser humano
Se mela com a cobiça
Se carrega com a ganância
Descarrega na justiça
Prende ela numa cova
Com a chave da injustiça”.
“Se alimenta com as drogas
Enche o peito de ilusão
Planta a peste e a fome
Pra colher a ingratidão
Vive preso em uma casa
No Bairro da solidão”.
“Já sujou todo o Oceano
Destruiu as nossas serras
Devorou as nossas matas
Nas presas dos motosserras
E por não ter água limpa
Andam pensando em guerras”.
“E as terras como estão?”
Patativa então falou.
“O direito pela posse
Do pobe que trabaiou
Tanto tempo em sua terra,
Ele já se apossou?”
“Mestre mestre eu lhe digo”
Antonio lhe respondeu.
Essa reforma agrária
Que o Governo prometeu
Uma parte ele entregou
E a outra ele comeu”.
“O pobre ganhou sua terra
Mas explora bem pouquinho
Falta projeto e incentivo
O gado só come espinho
Do cardeiro e da palma
Todo dia bem cedinho”.
“E assim o nosso pobre
Vive só da esperança
Reza pra que a chuva chegue
Germinando a bonança
Alegrando o sertanejo
Dando muita confiança”.
O poeta Antonio Francisco
Ainda quis se expressar
Mas Patativa na hora
Começou a conversar
Pegou um papel na mão
Para Antonio entregar.
E disse: “- Meu caro Antonio
Sou poeta populá
Vim aqui de outra vida
Pra você eu entregá
Esse papel importante
Dos poetas que tem lá”.
“É um presente divino
Recheado de ternura
Escrito com pena santa
Com palavras da escritura
Banhado de poesia
De amor e de doçura”.
“Guarde ele com carinho
Na copa do cajueiro
Que você plantou um dia
Lá no fundo do terreiro
Para os passarim lembrá
Desse homem brasileiro”.
Antonio agradeceu
Apertou a sua mão
Deu lembrança aos poetas
Que já foram deste chão
E que agora lá no céu
Fazem versos de oração.
Patativa foi embora
No bater de um segundo
Quando Antonio acordou
Daquele sono profundo
Começou a escrever
Sobre as mazelas do mundo.
Hadoock Ezequiel
04/07/2020
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