ARGUEIRINHA: MEMÓRIAS DE PEDRAS SERIDOENSES EM HUMBERTO HERMENEGILDO

 

 

 


“Tarde Chuvosa”, aquarela do artista plástico Vandeberg Medeiros.

Imagem autorizada pelo artista para divulgação.

 

 

 

Cercado por serras e pedras compostas por minerais variados, o Seridó apresenta uma paisagem exuberante que durante a seca guarda um jardim oculto e no tempo das chuvas exibe sua grandeza, cenas que estão guardadas na memória de muitos sertanejos, principalmente daqueles que tiveram uma experiência de vida no campo. Essa memória, pode ser observada no livro de poesia Argueirinha (2017), de Humberto Hermenegildo. Sua poesia traz a memória do Seridó através das imagens da paisagem sertaneja, seja por meio da chuva, da seca, dos costumes e da figura simbólica da pedra.

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 Humberto Hermenegildo de Araújo é seridoense, nasceu na cidade de Acari/RN. É professor de literatura e possui graduação em Letras (UFRN, 1980), mestrado em Teoria e História Literária (UNICAMP,1991), doutorado em Letras (UFPB, 1996) e estágio de pós-doutorado (Teoria Literária e Literatura Comparada, FFLCH/USP, 2010-2012). É professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, aposentado. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, Literatura Brasileira, Crítica Literária e História Literária, atuando principalmente nos seguintes temas: moderna literatura brasileira, regionalismo, correspondência, literatura e ensino, com ênfase no estudo da literatura local e regional.

É autor dos livros Modernismo: anos 20 no Rio Grande do Norte (1995), O lirismo nos quintais pobres: a poesia de Jorge Fernandes (1997) e Asas de Sofia: estudos cascudianos (1998), Rastejos (2017), Argueirinha (2017) e Arredado pé/La horda (2019).

            Argueirinha, pedra-ímã ou magnetita, é um mineral que desperta olhares no campo da astrologia e das terapias tradicionais. Na cultura popular, ela tem função de retirar argueiros do olho pela sua capacidade magnética. Em sua composição, é formada pelos óxidos de ferro. O mineral apresenta forma cristalina isométrica, geralmente na forma octaédrica, é quebradiço, fortemente magnético, de cor preta e de brilho metálico.

Entre os minerais, é a pedra mais magnética de todos os minerais da Terra, utilizada para a fabricação de bússolas. Na Grécia, a região Magnésia onde se encontrava boa parte da magnetita, era conhecida como "lugar das pedras mágicas", pois estas pedras "magicamente" se atraiam devido suas polaridades invertidas. Ainda de acordo com as crenças, ela nos ajuda a sair de situações destrutivas e promove a objetividade, equilibrando o intelecto e emoções, trazendo estabilidade interior.

            Na poesia presente em Argueirinha, encontramos essa energia da magnetita, representada pela poesia que atrai o leitor pelo o seu encanto poético. O livro apresenta paisagens sertanejas que podem ser identificadas de forma mais proximal pelos leitores que fazem parte da região. Assim como o mineral, sua poesia retira os argueiros dos olhos e nos faz enxergar mais vivamente as nossas paisagens e vivências do sertão. Somos atraídos pelas imagens poéticas da paisagem seridoense construídas a partir da relação com a tradição e os costumes, os quais nos levam a momentos de seca e de inverno. A partir de construções da linguagem, as imagens poéticas nos fazem sentir o cheiro da terra e da mata e ver o verde das plantas e o som das águas.

O livro é dividido em 9 partes, uma espécie de narrativa que cruza o sertão seridoense, partindo da seca para o inverno. O cenário construído por imagens poéticas forma uma sequência mnemônica do Seridó a partir da memória do leitor que reconstrói o tempo. Podemos considerar que “a memória nos dará esta ilusão: o que passou não está definitivamente inacessível, pois é possível fazê-lo reviver graças à lembrança. Pela retrospecção o homem aprende a suportar a duração: juntando os pedaços do que foi numa nova imagem que poderá talvez ajudá-lo a encarar sua vida presente” (CANDAU. 2012, p. 15).

As lembranças apresentadas no livro, fazem parte de uma tradição marcada pela seca, pelo sofrimento, mas que de tempos em tempos, renascem na chegada das chuvas e se atualizam a cada invernada. Trazendo muitas vezes o passado de quem vivenciou as experiências do campo nordestino, atualizando-as na memória do leitor. Localizado na mesorregião central do Rio Grande do Norte, o Seridó, em sua história, é marcado pelas atividades ligadas à pecuária tornando-se uma região peculiar. Foi a partir do ciclo do gado que essa mesorregião é destacada pelos seus valores econômicos, religiosos e socioculturais, sublinhando essa área geográfica com suas características peculiares. Foram essas características que contribuíram para o imaginário popular. “Foi no dia a dia da luta sertaneja com o gado, o clima, a geografia (serras, serrotes) os festejos, as festas populares e religiosas, os bois valentes, as vaquejadas que fez nascer o cantador, improvisador, o violeiro semiprofissional [...]” (CASCUDO, 1956, p. 28).

Na poesia de Hermenegildo, encontramos, portanto, as lembranças das paisagens seridoenses, marcadas por essas culturas. Selecionamos aqui, As pedras, terceira parte do livro. Nos poemas presente nesse capítulo, observamos um eu lírico que se mistura ao sertão, nas brenhas de pedras. Ele vê de perto as imagens da Caatinga, das casas velhas e traz de maneira forte as pedras - as memórias - não só dele, mas de quem viveu e já passou pela região. Em “Lacuna”, é possível observar os mocós, os grilos, as rãs, a cigarra e a “cinza do que fora verde”, ou então, se reportar a tempos distantes nas paredes pintadas pelos ancestrais, antigas moradas. Tema que reaparece no poema “Pintura” - “[...] gravuras nos paredões/rascunhos de batalhas de outras eras”.

            O Seridó, região marcada pela paisagem seca e de serras, cobertas por pedras que ora lembram personagens ora lembram animais.  Essas pedras são carregadas de minerais preciosos como a Scheelita que faz parte da economia local. Além dela, a região ainda possui grande concentração de ouro. O poema “Calamitas”, encontrado na terceira parte do livro, traz um valor simbólico das pedras que fazem parte das terras seridoenses. As calamitas são minerais tremolitas formado por cálcio, magnésio e ferro e serve como isolante, variando entre as cores branca e verde. Assim como as demais pedras apresentadas no poema, temos aqui um mineral que desperta a curiosidade de quem o olha. Segue abaixo o poema:

  

CALAMITAS

 

As pedras de serventia:

De amolar

Pedra-sabão

Pedra-ímã.

 

Cassiteria berilo malacacheta xelita mica niobita

Envelopadas nas serras, emboladas nos serrotes

Vistas ao sol

Ou da solidão do alpendre.

 

Pedra da lua, pedra-d’água, pedra de fogo, esmeralda de inveja ou merecimento.

 

As pedras antigas sílex, argueirinha, pederneira

Pedrinhas de brincadeira.

 

Verbo enjeitar: rochas ígneas

Falsificar: indez quase

Quartzo, água-marinha das faíscas. (ARAÚJO, 2017, p. 27)

 

 As pedras estão presentes em todos os momentos de nossa vida, seja em forma de joias ou em forma bruta. Na história da humanidade, elas serviram muitas vezes como ferramentas capazes de ajudar o homem nas tarefas diárias. Nas primeiras estrofes do poema, o eu lírico apresenta algumas pedras que têm a finalidade de ferramentas que fazem parte da cultura seridoense que são as pedras de “amolar, pedra-sabão e pedra-ímã”.

Em seguida, na segunda estrofe, sem ponto e sem vírgula, as pedras descem como cachoeiras rolando nas formações geográficas: “Cassiteria berilo malacacheta xelita mica niobita/Envelopadas nas serras, emboladas nos serrotes”. São rochas que formam a paisagem seridoense que podem ser “Vistas ao sol/Ou da solidão do alpendre”.

As pedras, com sua atração, despertam também a curiosidade das crianças, fazendo então, parte de suas infâncias. Quem viveu na zona rural, traz lembranças de faíscas ao bater uma pedra na outra, ou pedras que na imaginação infantil serviam como brinquedos. Essas pedras são, portanto, representadas no poema “Calamitas”: “As pedras antigas sílex, argueirinha, pederneira/Pedrinhas de brincadeira”, pedras essas que estão guardadas na memória do eu lírico, mas que fazem parte da lembrança de todos os seridoenses que vivenciaram tais brincadeiras. Vele destacar a argueirinha, que dá nome

ao livro em questão. Pedra ímã, que tem atração e envolve sobre ela uma magia, por isso, dizer que o título nos atrai ao encantamento poético.

“No meio do caminho tinha uma pedra/ Tinha uma pedra no meio do caminho”. (DRUMMOND, 2014, p.22). Ao estudar a literatura potiguar, encontramos no meio do caminho uma pedra de valor inestimável – a poesia de Argueirinha. Na leitura do livro de Hermenegildo, o leitor passeia pelas paisagens do sertão seridoense, trazendo a memória do homem sertanejo e viajando pela infância do eu lírico. Lapidamos aqui algumas pedras preciosas. Porém, ainda precisamos de mais estudos sobre nossos autores, garimpando nas terras potiguares, obras importantes como Argueirinha para que nossas produções não permaneçam no anonimato.

 

Me. Hadoock Ezequiel

28/08/2020

 

REFERÊNCIAS 

ANDRADE, Carlos Drummond. Nova reunião: 23 livros de 8 ed. – Rio de Janeiro: BestBolso, 2014. (v. 1)

ARAÚJO, Humberto Hermenegildo de. Argueirinha. Goiania: Editora UFG, 2017.

CASCUDO, Luís da Câmara. Tradições populares da pecuária nordestina. Rio de Janeiro: MA - Serviço de Informação Agrícola; Natal: Fundação José Augusto, 1956. 

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. Tradução Maria Letícia Ferreira.

São Paulo: Contexto, 2012.

 

 


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