UM GRITO POÉTICO DE UM CABOCLO DO SERTÃO

 

Hadoock Ezequiel 15/10/2020



Na primeira década desse século, não lembro de ouvir as pessoas falarem muito do cordel ou lê-lo nas ruas, nas escolas ou em casa. Essa literatura nacional e especificamente nordestina, calou-se por um bom período na boca do nosso povo, ficando guardada na memória de nossos avós.

Tida por muitos como uma literatura menor, o cordel só veio à tona novamente depois de alguns estudiosos e acadêmicos lançarem seus olhares para ele. No entanto, mesmo não sendo ainda vivenciado pela população atual, ele se mantinha vivo nos mais diversos recantos do Brasil. No Nordeste, era possível encontrar, nas quebradas do sertão, nossos poetas rimando e cantando seus temas diversos.

Na atualidade, o cordel ganhou asas e está em todo lugar, alegrando a leitura de muita gente e fascinando o público com suas histórias e romances. Muitos deles, apresentam um papel social, que por meio da imagem poética, denunciam as mazelas do mundo.

Nos últimos anos, o Seridó Potiguar, transformou-se em um reduto de poetas cordelistas de todas as idades, destacando-se pela presença de poetas mirins. A maioria desses novos poetas que vêm se revelando, têm como inspiração o Mestre Antônio Francisco, que traz em sua poética, um campo semântico social.

Dentre os vários novos poetas Potiguares, destaco aqui, Daniel Francisco, da cidade de Parelhas. Popularmente conhecido por Caboclo, é filho de Manoel Francisco da Silva e Darci da Silva. Nascido no dia 27 de setembro de 1987 em Parelhas RN, foi criado no bairro São Sebastião, periferia da cidade e conhecida pelo grande potencial artístico e histórico.

A comunidade fica às margens do rio Seridó que tanto inspirou e inspira grandes poetas da região. Caboclo viveu uma infância simples, trabalhando com o pai e o avô Severino Caboclo (in memorian), na roça e outras atividades braçais como a olaria. Estudou a vida toda em escola pública e sempre se dedicou ao fortalecimento da cultura do estado Potiguar. Graduado em Letras/Língua Portuguesa e Literatura (CERES-UFRN-2014), mestre em Linguagem e Ensino (POSLE-UFCG-2018), atualmente é professor do Estado do Rio Grande do Norte e cursa Especialização em Literatura e Ensino (IFRN-NATAL-ZONA LESTE).

 Atua na área da Cultura Popular, com ênfase nas Manifestações Literárias Orais e Escritas. Poeta popular, declamador, ator, músico e compositor, realiza há quatro anos o Encontro de Poetas do Seridó, um dos maiores eventos do gênero na região nordestina e participou do longa metragem Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, além de espetáculos teatrais e musicais.

Dentre seus vários poemas, apresento para o público leitor, Menino de rua, que traz um cunho de crítica social, em que o poeta explora a questão da desigualdade social em nosso país, além de abordar a exploração do trabalho infantil. Porém, o poeta não se preocupa apenas em denunciar, existe um trabalho estético em sua construção poética. Estruturado em estrofes de sextilhas com sete sílabas poéticas, o poeta traz uma narrativa permeada por imagens, apresentando literariedade.

Segue abaixo o cordel para que os leitores conheçam o grito e a força da poesia do Caboclo Daniel Francisco:

 

MENINO DE RUA

 

Nosso mundo sempre teve

Essas coisas que hoje tem

Alguns vivendo com pouco

Outros vivendo tão bem

E quem tem tudo que quer

Não divide com ninguém.

 

Mas de fato é complicado

Abrir mão do que ganhou

No trono de quem tem tudo

Nunca deixa o que herdou

Ninguém pretende perder

Aquilo que conquistou.

 

Há dias tenho pensado

Do quanto fui arrogante

Das vezes que machuquei

Pensando ser importante

Jogando todo meu ódio

Nas costas do semelhante.

 

Dessa forma vou contar

Do jeito que me ocorreu

Nesse cordel popular

Um caso que aconteceu

No dia que a cortesia

O meu orgulho venceu.

 

Minha vida sempre foi

Coberta de sortimento

Desde cedo tive acesso

A muito conhecimento

Herdei gigante fortuna

Mas venci com meu talento.

 

Desde novo fui formado

Nos valores mais cristãos

De saber amar o próximo

E na dor darmos as mãos

Dividir nossos problemas

Não ferir nossos irmãos.

 

Mas tudo muda na vida

Onde a soberba domina

Nessa classe que nasci

Que a cobiça predomina

Tem gente que sempre age

Como um juiz de esquina.

 

Sempre fui autoritário

Nasci com o dom de mandar

Se alguém me fizesse raiva

Já queria hostilizar

Mas um dia em minha casa

Um fato me fez mudar.

 

Precisei sair de carro

Quando abri minha garagem

Notei que lá fora tinha

Um menino na rodagem

De certa forma me olhando

Com teor de malandragem.

 

Eu pensei que se tratava

De uma criança drogada

Cabelos longos e sujos

A boca toda estragada

Estava tão mal vestido

Com roupa velha e rasgada.

 

Juntava lata na rua

Muito plástico e também osso

De vez em quando tocava

Um terço no seu pescoço

Com um semblante de fé

Mas pensei não ser bom moço.

 

O moleque estava ali

Com gesto todo faceiro

Parava o povo dizendo:

− Me socorra companheiro

Tem um pedaço de pão

Por favor, tem um dinheiro?

 

Fiquei tão inconformado

Olhando a situação

Me aproximei do menino

E disse: − Preste atenção

Pegue o beco e vá embora

Saia dessa condição.

 

Não quero vê por aqui

Nenhum malandro e bandido

Não caio nessa conversa

De dizer que é oprimido

Querendo me dá um bote

Vivendo aí escondido.

 

O menino juntou tudo

Deu um suspiro bem forte

E de forma respeitosa

Disse assim: − Senhor, conforte

Antes desejo que escute

Um pouco da minha sorte.

 

 

Quem me vê assim na rua

Todo sujo e mal vestido

Me julga com tal desprezo

Me deixando tão partido

Que só meu papai do céu

Sabe o que tenho sentido.

 

Talvez lhe provoque espanto

Em me vê pedindo esmola

Levando minha comida

Como um lixo na sacola

Na verdade deveria

Estar mesmo numa escola

 

Mas, porém tenho tentado

Levar uma vida honrada

Todo dia estou na rua

Mas não faço coisa errada

Eu procuro prosseguir

Na minha triste jornada.

 

Eu peço porque não tenho

Outra forma de viver

Ninguém me dar um emprego

Porque não sei escrever

Não tive como estudar

E nunca aprendi a ler.

 

Inclusive comecei

A trabalhar no pesado

Mas o serviço que tive

Foi logo fiscalizado

Por não ter a idade certa

Meu senhor fui dispensado.

 

E na igreja da cidade

Também já fui sacristão

Mas as coisas são difíceis

Pra quem nasceu no sertão

Por não ter roupa bonita

Perdi minha comunhão.

 

Essa roupa que hoje visto

Ganhei da sua senhora

Na verdade não ganhei

Sua esposa jogou fora

Mas mamãe pediu que ela

Me desse na mesma hora.

 

O meu sonho na verdade

Sempre foi ser jogador

Mas jogar em um bom time

Daqueles do exterior

Aprender falar inglês

Me vestir como o senhor.

 

Minha mãe trabalha aí

Nessa casa de empregada

Prossigo o dia aguardando

Seu momento de largada

Pois ela me traz o resto

Da comida que é deixada.

 

Eu moro com minha mãe

Na subida da favela

Lá no morro da esperança

No bairro duma esparrela

Na esquina de uma boca

De fumo que vende nela.

 

Nunca conheci meu pai

Ele nos abandonou

Quando soube que mamãe

Sem querer engravidou

Foi embora e nunca mais

Na nossa casa voltou.

 

Peço perdão meu senhor

Sei que não lhe satisfaz

Não vou ficar por aqui

Não pense que sou fugaz

Vou pedir na outra rua

Fique tranquilo e na paz.

 

Quando ele afirmou aquilo

Eu senti dentro de mim

Um sentimento profundo

Parecendo não ter fim

Peguei na mão do garoto

             Em seguida disse assim:

 

− Menino, peço perdão

Desculpe minha arrogância

Confesso que sou um tolo

Com total ignorância

Não quero que sofra tanto

Destruindo sua infância.

 

Naquele grave segundo

Parei ali de repente

Ao mesmo tempo não soube

Fazer algo diferente

Como fui tão desumano

Como agi tão cruelmente.

 

Daquele dia em diante

Quando vejo uma criança

Na rua pedindo esmola

Não faço desconfiança

Dou o pouco que tiver

Se puder dou esperança.

 

Dessa forma pense bem

Ao fazer pré-julgamento

Não bata com seu martelo

Não feche seu pensamento

Valorize sempre a vida

Se puder também divida

Esse meu ensinamento.

 



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