INFÂNCIA E VELHICE NA POESIA DE THEO ALVES

  


As atividades ligadas à pecuária fizeram do Seridó uma região peculiar, assim, sua literatura está voltada para as vivências do seu povo - grupos religiosos, agrícolas e pastoris. Foi a partir do ciclo do gado que essa mesorregião se destacou pelos seus valores econômicos, religiosos e socioculturais. Essas características contribuíram para o imaginário de muitos dos nossos escritores, mas como tantas outras culturas, a literatura se adapta ao seu tempo. Os nossos escritores ressignificaram o sentimento de pertencimento e das tradições. Na contemporaneidade, encontramos no Seridó Potiguar, escritores que apresentam temas variados, acompanhando o que é produzido no Brasil, tento em temática quanto em estética.  Dentre os nomes da nossa literatura contemporânea, destacamos o escritor Theo Alves.

Theo G. Alves, nasceu em 1980, em Natal, contudo, cresceu em Currais Novos e é radiado em Santa Cruz/RN. É escritor, fotógrafo e publicou os seguintes livros: Loa de Pedra (poesia), um livro publicado artesanalmente; A casa Miúda (contos); Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis (poesia e contos), em 2009; A Máquina de Avessar os Dias (poesia), em 2015; Doce Azedo Amaro (poesia), em 2018, além de ter participado de várias coletâneas de poesia e contos. Venceu o prêmio nacional Ingnácio de Loyola Brandão de Literatura com o conto Por que não Enterramos O Cão?  e em 2020, lançou o livro com o mesmo título.



        Quanto a sua poesia, Theo traz uma construção poética marcada pelo labor com a palavra. A disposição dos versos é arquitetada, dialogando com as imagens construídas ao longo do poema. É frequente a repetição de palavras, um jogo sintático e semântico advindo do lugar de cada vocábulo, seria o próprio trabalho sobre a escrita da poesia, um caráter metalinguístico sentido, principalmente, no seu primeiro livro Loa de Pedra (2004), mas reavivado nas produções seguintes.



Na leitura de seus três livros de poesia Loa de Pedra (2004), Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis (2009), A máquina de avessar os dias (2015), notamos a presença de realidades do cotidiano familiar, da vivência no Seridó, da reflexão sobre pequenas coisas que nos passam despercebidas, mas que constituem nossas vivências. Destaca-se também o convívio com a figura da Avó, além de imagens relacionadas a espaços urbanos, principalmente a vida da rua, das construções, da casa.



Azevedo (2004), no prefácio do livro Loa de Pedra, afirma que Theo Alves é um poeta que se insere nas coisas para transformá-las em poesia. Coisas que têm sentido da perda e da dúvida, mas que acabam pertencendo ao hoje. Vale ressaltar que esses elementos estão sublinhados pela memória da infância, aspecto contundente na sua poesia.

No poema “As cantigas da minha Avó” do livro Loa de Pedra (2004) traz a redescoberta/reconstituição do eu lírico a partir da simbologia da personagem da Avó. Em uma de suas entrevistas, Theo Alves assevera esse contato com a sua Avó, personagem central na sua criação. Sabemos da linha tênue entre a criação poética e a vida do autor, no entanto, podemos considerar que essas imagens presentes foram transfiguradas e construídas poeticamente.

 

As Cantigas de Minha Avó

“lentamente, como se temesse que o barulho acordasse alguma lembrança”.

- Alberto Szpunberg

 

Em dias de ontem

Minha Avó entoava umas cantigas sem tempo –

De sempre –

Em todo o tempo.

 

Ao pé da máquina de costura

Chilreava notas em pares

Que a música

Jamais alcançara.

 

Minha Avó cantava outra música:

Música dela –

Apenas dela

E de minha infância,

Que também lhe pertencia.

 

 

O poema é povoado por um saudosismo – a infância. Essa fase da vida do eu lírico, é acompanhada por uma cantiga entoada pela sua avó, o que a torna sagrada e única.  Para Bosi (1977, p. 13), na poesia, “a imagem amada, e a temida, tende a perpetuar-se: vira ídolo ou tabu. E a sua forma nos ronda com a doce ou pungente obsessão”. Essa figura da Avó, presente no poema, é uma imagem amada que se perpetua e perpassa os tempos. “A imagem pode ser retida e depois suscitada pela reminiscência ou pelo sonho. Com a retentiva começa a correr aquele processo de coexistência de tempos que marca a ação da memória: o agora refaz o passado e convive com ele”. (BOSI, 1977, p.13).

Logo no título, a imagem da avó antecedida pelo pronome “minha” com inicial maiúscula, evidencia que o eu lírico quer dar destaque para sua avó, visto que a sua imagem é lembrança de um passado que a todo momento se presentifica, fazendo parte do agora. Para Bosi (1977 p. 112), “a instância poética parece tirar do passado e da memória o direito à existência; não de um passado cronológico puro – o dos tempos já mortos -, mas de um passado presente cujas dimensões míticas se atualizam no modo de ser da infância e do inconsciente”.

O poema inicia com o verso: “Em dias de ontem”, que indica o passado vivido pela infância do eu lírico. O advérbio “ontem” traz a memória do passado para o agora, suscitando assim, as reminiscências de outrora. Logo em seguida, no segundo verso, “Minha avó entoava umas cantigas sem tempo”, visualizamos uma imagem que perpassará e se conectará a todos os outros versos. O substantivo “cantigas” adjetivado por “sem tempo” confere um conceito de atemporalidade as cantigas da Avó do eu lírico, pois o não tempo vivifica-as permanentemente. Ideia ratificada no terceiro e quarto versos, nas expressões: “De sempre” e “Em todo o tempo”.            

            A memória do eu lírico é ativada pela sinestesia que vem representada pelo som do canto da Avó e pela visão. A cantiga entoada pela Avó, mistura-se ao som e imagem da máquina, que também ficou registrada na memória da infância do eu lírico. Por essa razão, o compasso é feito por “notas em pares”, como se evidencia no sexto verso. A cantiga, portanto, é sagrada, “a música jamais alcançará” suas notas.

Mais uma vez, o pronome possessivo “minha” reaparece no início da última estrofe, acompanhando a Avó e ratificando a ideia de pertencimento – “Minha Avó cantava outra música:”. O pronome indefinido “outra” corrobora para a não definição para as cantigas de sua avó, já que estão em um não lugar, ou no entre-lugar do passado e do presente, pois mesmo sendo rememoradas permanecem indefiníveis, devido o papel místico que lhe são conferidas.

Para o eu lírico a música entoada por sua avó tem a identidade “apenas dela”. No entanto, entrelaça-se com o neto. O pronome “minha”, agora adquire nova conotação, acompanhando também a infância do eu lírico – “E de minha infância, /Que também lhe pertencia.” A criação de imagens poéticas permeadas por figuras marcantes, como a Avó, remonta o olhar atencioso para a infância do eu lírico.

 Outro poema que apresenta essa figura materna, intitula-se “A máquina de avessar os dias de minha avó”, no qual são vistas a representação da velhice e a percepção amorosa aos pequenos gestos e ideias do ser humano nessa fase da vida. Na sociedade capitalista em que vivemos, os velhos, em sua maioria, são descartados do convívio social. Cada vez mais, os jovens se distanciam dos seus parentes mais idosos, deixando de lado sua cultura e costumes.  Segundo Bosi (2009),

 

Além de ser um destino do indivíduo, a velhice é uma categoria social. Tem um estatuto contingente, pois cada sociedade vive de forma diferente o declínio biológico do homem. A sociedade industrial é maléfica para a velhice. [...] A sociedade rejeita o velho, não oferece nenhuma sobrevivência à sua obra.  (BOSI, 2009, p. 78)

 

A realidade é que tudo neste mundo acaba sendo descartável, o imprestável é abandonado e muitos desses jovens acabam maltratando os mais velhos.  Existe, portanto, uma não relação afetuosa entre o mais jovem com o mais velho. “A característica da relação adulto com o velho é a falta de reciprocidade que pode se traduzir numa tolerância sem o calor da sinceridade”. (BOSI, 1977, p. 78)

Sob essa ótica, a poesia tende a representar a velhice, destacando os vários pontos, desde os maus tratos até a sua beleza.  Na poesia de Theo, o que vemos é um pensamento oposto ao que a sociedade capitalista apresenta.

A máquina de avessar os dias de minha avó

 

minha avó

inventou uma máquina

de avessar os dias:

 

antes de sua morte

pôs-se a engendrar

memórias

             - gente com asas

             - estranhas histórias do tempo

             - cães de nomes improváveis

                                            e lindo

 

eliminou

de seus dias as

pessoas reais -

             que pode

             haver de mais tedioso

             que gente

             concreta

             ou tijolos e barro e pedras?

 

minha avó

             com sua máquina de

             avessar os dias

acordava

a casa no meio da noite

ironizava

a invenção do vento

esquecia

os nomes inúteis das filhas

recriava

o absurdo não linear do tempo.

 

era uma máquina

de costurar avessos -

retalhos

coloridos do tempo:

 

guardei-a para mim

        - minha avó

        e sua máquina de aventuras -

para usá-la

quando for

meu tempo.

 

No poema, nota-se que o eu lírico, a partir de um olhar sensível, enxerga nas atitudes de sua avó, já debilitada pela idade e com as ideias confusas, uma grande beleza, uma vez que passa a valorizar as criações feitas por ela, como por exemplo, “engendrar memórias/- gente com asas/- estranhas histórias do tempo”.

 O poema narrativo inicia com uma afirmação do eu lírico:  “minha avó/ inventou uma máquina/de avessar os dias:”.  O término da primeira estrofe apresenta dois pontos, sinalizando uma pausa que trará uma explicação nos versos seguintes. Também percebemos duas ações importantes – “inventar” e “avessar”, verbos que semanticamente nos leva para sentidos que estão fora da realidade, a fabulação e o contrário (o avesso). A essas ideias, o eu lírico, resolve dar o nome de “máquina de avessar os dias”.

Mais uma vez, percebemos a presença de máquina, signo que acaba sendo ligado à figura da avó. Ideia que dá movimentos à leitura poética, podendo ser percebido pela própria estrutura do poema, uma vez que as estrofes estão sempre em sentidos opostos, como se as ideias da avó fossem costurando o próprio dia. Nota-se que a avó está no final da vida e ela torna seus últimos dias em poesia, inventa nomes e coisas improváveis e elimina a realidade, as pessoas e o tédio: “antes de sua morte/pôs-se a engendrar memórias”.

A essa idade, a Avó não tem mais preocupação com ontem nem com o agora, apenas quer viver sua fantasia, por isso o tempo se torna não linear. O passado mistura-se ao presente, corporificando-se pela memória em ação. “minha avó /com sua máquina de avessar os dias /acordava a casa no meio da noite/ironizava a invenção do vento/esquecia os nomes inúteis das filhas/ recriava o absurdo não linear do tempo”.

A velhice é como a infância. Voltamos a viver um mundo de fabulações. A avó, presente no poema, encontra-se em uma fase de recriar suas memórias. Ela se apropria da memória do passado e dar novo sentido. Assim como uma criança, ela cria coisas “improváveis”. Essa realidade de tantas avós, acaba arrancando o riso dos adultos que não as compreendem.

Engendrar nomes para animais como os dos cães, é um exemplo da não compreensão dos adultos, uma vez que os nomes são “improváveis”, o que para o mundo da memória do idoso não há nada de estranho. O eu lírico, atento a esse mundo de ideias, consegue refletir e entender sua avó a partir de um olhar sensível. A conjunção “e” assume um valor adversativo, realça o seu ponto de vista em relação ao da avó. Para os adultos, os nomes inventados podem ser alheios, mas para quem o ver com um olhar diferenciado, tornam-se “improváveis/e lindo”.

Por fim, ao observar as memórias reinventadas pela Avó com sua máquina de avessar os dias, o eu lírico as toma como exemplo para o seu próprio percurso da vida: “guardei-a para mim/- minha avó/e sua máquina de aventuras –”. Um dia, todos aqueles que viverão décadas, estarão sujeitos a perder a “memória-hábito” e vivenciar a “imagem-lembrança” e trazer “à tona da consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida. [...] (BOSI, 2009). Diferente da maioria dos adultos que ignoram a velhice e suas memórias, o eu lírico do poema, faz uma reflexão acerca das lembranças e imagens construídas pela memória de sua Avó e as toma como exemplo “para usá-la/quando for/meu tempo”.

A construção da poesia de Theo Alves se soma à grandeza da Literatura do Seridó e Potiguar. Marcada por uma escrita singular, tecida com imagens mnemônicas, ora trazendo retalhos coloridos de sua infância, ora destacando a velhice pela figura de sua Avó, apreende o leitor nesse mundo literário.  O autor, nos leva ao passado e nos faz reviver a infância, com brincadeiras, paisagens do Seridó e a relação de afeto no espaço de uma memória acionada pelas imagens dos mais velhos. Construída a partir de uma linguagem com caráter metalinguístico, um jogo sintático e semântico, sua poesia é como uma “máquina de avessar os dias” e o tempo. O avesso é o constructo utilizado para ressignificar as imagens recolhidas em sua poética.

Além da memória e da infância, a poesia de Theo, traz uma reflexão e questionamentos sobre o ser humano. Apela para suas contradições entre o que é bonito e feio, revirando os escombros no submundo da memória.  No mundo capitalista, as pessoas aparentemente não se preocupam tanto com o seu passado e nem com sua história, o agora é mais importante. A identidade acaba evaporada e o eu se desconfigura.

Theo traz uma preocupação com os mais velhos, nos fazendo refletir sobre a vida. Precisamos respeitar as atitudes, desejos e o imaginário dos mais velhos, pois são suas “máquinas de aventuras” que nos servirão quando for “nosso tempo”. Precisamos fazer parte de um grupo de referência para que possamos estabelecer uma rede de pensamentos, como afirma Halbwachs (1990). Para o autor, não é obrigado que esse grupo esteja presente fisicamente para o indivíduo, ele pode se fazer presente pelas experiências e pelas lembranças, sendo estas últimas, fruto de um processo coletivo. Assim, é a memória dos mais velhos, sempre precisaremos de sua referência, de sua memória para que possamos construir nosso presente e nossas próprias lembranças.

 

Hadoock Ezequiel

23/10/2020

 

Referências

 

ALVES, Theo. Loa de pedra. 2004 (Publicação artesanal).

ALVES, Theo . Pequeno manual prático de coisas inúteis. Natal: Editora Flor do Sal. 2009.

ALVES, Theo. A máquina de avessar os dias. Natal: Editora Flor do Sal. 2015.

ALVES, Theo. Por que não enterramos o cão? São Paulo: Editora Patuá. 2020.

AZEVEDO, Wilson. E a Pedra se fez verbo... Prefácio. In: Loa de Pedra. 2004.(Publicação Artesanal).

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo : Martins Fontes, 1988.1988

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Editora Cultrix. 1977.

BOSI, Éclea. Memória e Sociedade: Lembrança dos velhos. 15 ed. São Paulo: Companhia das  Letras, 2009.

ENTREVISTA COM O ESCRITOR THEO ALVES. Disponível em: <http://apoesc.blogspot.com.br/2015/07/entrevista-com-o-escritor-theo-alves.html>. Acesso em: 30 mar. 2017.

 

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.




 

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